Resumo
Objetivo
Estabelecer uma zona de segurança neurovascular no acesso cirúrgico do terço médio da clavícula por dissecção em cadáveres.
Métodos
Foram dissecados 20 ombros de 10 cadáveres, foi feita a dissecção profunda do terço médio da clavícula e identificaram‐se as seguintes estruturas: veia subclávia, tronco superior do plexo braquial (divisão anterior e posterior) e nervo supraescapular. Essas estruturas foram demarcadas para mensuração de suas distâncias até os pontos mais próximos do terço médio da clavícula.
Resultados
A distância média do terço médio da clavícula ao nervo supraescapular, à veia subclávia, ao tronco superior, à divisão anterior do tronco superior e à divisão posterior do tronco superior foi, respectivamente, do lado direito: 15,92 cm; 10,77 cm; 23,68 cm; 14,60 cm e 15,42 cm; do lado esquerdo: 12,69 cm; 9,82 cm; 22,19 cm; 12,16 cm e 13,46 cm.
Conclusão
Houve diferença estatística entre as distâncias do nervo supraescapular e a divisão anterior do tronco superior comparativa entre os lados direito e esquerdo. As estruturas neurovasculares mais próximas ao terço médio da clavícula foram o nervo supraescapular e a veia subclávia.
Abstract
Objective
The aim of this study was to establish a neurovascular safety zone for surgical access in the middle third of the clavicle, by means of dissection on cadavers.
Methods
Twenty shoulders were dissected in 10 cadavers, with deep dissection of the middle third of the clavicle. The following structures were identified: subclavian vein, upper trunk of the brachial plexus (anterior and posterior divisions) and suprascapular nerve. These structures were marked out in order to measure their distances from the most proximal point of the middle third of the clavicle.
Results
The mean distances from the middle third of the clavicle to the suprascapular nerve, subclavian vein, upper trunk, anterior division of the upper trunk and posterior division of the upper trunk were respectively, for the right side: 15.92 cm, 10.77 cm, 23.68 cm, 14.60 cm and 15.42 cm; and for the left side: 12.69 cm; 9.82 cm; 22.19 cm; 12.16 cm and 13.46 cm.
Conclusion
There was a statistical difference in the distances to the suprascapular nerve and anterior division of the upper trunk, in comparing between the right and left sides. The closest neurovascular structures to the middle third of the clavicle were the suprascapular nerve and subclavian vein.
Palavras‐chave
Clavícula/cirurgia; Clavícula/anatomia; Cadáver
Keywords
Clavicle/surgery; Clavicle/anatomy; Cadaver
Introdução
A clavícula tem importante relação anatômica com a artéria subclávia, a veia subclávia e o plexo braquial, em especial no seu terço médio, cuja curvatura é o ponto de referência usado para acesso a essas estruturas. Nos traumas e/ou nas cirurgias do terço médio da clavícula, em especial nas fraturas que necessitam de redução e fixação por cirurgias abertas, com o uso de material de síntese, essas estruturas podem ser lesionadas pela sua proximidade anatômica.1 and 2
O plexo braquial é formado pelas raízes de C5, C6, C7, C8 e T1, origina‐se da espinha cervical em direção aos membros superiores e passa entre os músculos escalenos médio e anterior. As raízes de C5 e C6 formam o tronco superior, de onde emerge o nervo supraescapular. Cada tronco divide‐se em anterior e posterior ao passar abaixo da clavícula.3
A artéria subclávia direita é um ramo do tronco braquiocefálico e a artéria subclávia esquerda, do arco aórtico. A estrutura anatômica referência para a artéria subclávia é o músculo escaleno anterior e pode ser encontrada na borda póstero‐medial desse músculo ou na sua borda lateral. A veia subclávia é uma continuação da veia axilar e se estende da borda da primeira costela até a borda medial do músculo escaleno anterior, onde se junta à veia jugular interna para formar a veia braquicefálica. A clavícula e o músculo subclávio estão localizados anteriormente à veia subclávia.1
O objetivo deste trabalho foi estabelecer uma zona de segurança neurovascular no acesso cirúrgico do terço médio da clavícula por dissecção em cadáveres.
Métodos
Foram selecionados 10 cadáveres recém‐resfriados. Três eram de mulheres e sete de homens. A média foi de 63,6 anos (55 a 73), a de altura 1,67 m (1,58 a 1,73), a de peso 62 kg (40,4 a 77) e a de IMC 22,1 kg/m2 (16,1 a 25,65). Não apresentavam anormalidades congênitas, sinais de trauma ou cirurgia prévia nos ombros estudados. Todas as dissecções foram feitas pelo mesmo grupo de pesquisadores. Um estudo piloto de quatro ombros de dois cadáveres foi feito previamente, antes que fosse iniciada a coleta de dados, para melhor conhecimento e estudo da anatomia local (tabela 1).
Tabela 1.
Descrição das amostras, da idade, da altura, do peso e do IMC
Amostra Média Desvio padrão Mediana
Idade (anos) 10 63,6 5,5 62,5
Altura (metros) 10 1,67 0,06 1,68
Peso (kg) 10 62,0 11,7 66,0
IMC (kg/m2) 10 22,1 3,5 22,9
Table options
Os procedimentos foram feitos com o cadáver em posição padronizada de decúbito dorsal horizontal, coxim sob a escápula ipsilateral e membro superior em posição neutra. Com caneta cirúrgica foi feita marcação na pele da anatomia superficial da clavícula e das articulações acromioclavicular e esternoclavicular. Foi feita incisão transversal da pele de toda a extensão da clavícula e dissecção dos planos musculares, com exposição do músculo subclávio (origem e inserção), e demonstrou‐se com marcadores sua relação com o terço médio da clavícula ântero‐inferiormente (fig. 1).
Full-size image (31 K)
Figura 1.
Demarcação do terço médio da clavícula e do músculo subclávio (marcadores brancos).
Figure options
Após exposição muscular, foram feitas a divisão dos três terços da clavícula e a dissecção mais profunda do terço médio, nas quais foram identificadas as seguintes estruturas neurovasculares: veia subclávia, tronco superior do plexo braquial (divisão anterior e posterior) e nervo supraescapular. Essas estruturas foram demarcadas com marcadores coloridos e registraram‐se as distâncias até o ponto mais próximo do terço médio da clavícula com um paquímetro digital 150 mm Kingtools® (fig. 2).
Full-size image (44 K)
Figura 2.
Marcador rosa: nervo supraescapular; marcador verde: tronco superior; marcador branco: divisão posterior do tronco superior; marcador amarelo: divisão anterior do tronco superior; seta branca: veia subclávia.
Figure options
Para análise estatística foi usado o teste de Wilcoxon pareado. O nível de significância adotado foi de 5% e o software usado para análise foi o SAS versão 9.2.
Resultados
A distância média do terço médio da clavícula ao nervo supraescapular, à veia subclávia, ao tronco superior, à divisão anterior do tronco superior e à divisão posterior do tronco superior foi de, respectivamente, no lado direito: 15,92 cm; 10,77 cm; 23,68 cm; 14,60 cm e 15,42 cm; no lado esquerdo: 12,69 cm; 9,82 cm; 22,19 cm; 12,16 cm e 13,46 cm.
A tabela 2 apresenta os resultados das medidas feitas entre o terço médio da clavícula e as estruturas neurovasculares estudadas.
Tabela 2.
Valores de média, desvio padrão, mediana e valor p das distâncias entre as estruturas anatômicas e o terço médio da clavícula
Amostra Média Desvio padrão Mediana Valor p
Nervo supraescapular direito 10 15,92 5,32 15,53
Nervo supraescapular esquerdo 10 12,69 13,02
Diferença 10 3,23 3,75 2,91 0,0273a
Veia subclávia direita 10 10,77 3,23 10,49
Veia subclávia esquerda 10 9,82 4,04 8,75
Diferença 10 0,95 2,27 1,39 0,2754
Tronco superior direito 10 23,68 6,04 22,38
Tronco superior esquerdo 10 22,19 6,41 20,10
Diferença 10 1,50 2,61 1,74 0,1309
Divisão anterior direita 10 14,60 5,76 13,64
Divisão anterior esquerda 10 12,16 4,00 12,67
Diferença 10 2,44 2,96 2,18 0,0371a
Divisão posterior direita 10 15,42 5,16 15,39
Divisão posterior esquerda 10 13,46 3,82 13,17
Diferença 10 1,96 3,30 2,65 0,1055
a
Medida em milímetro, com diferença estatística (p < 0,05).
Table options
Discussão
As indicações do tratamento cirúrgico das fraturas do terço médio da clavícula aumentaram com o passar dos anos, devido ao melhor entendimento da biomecânica e da função da clavícula, ao maior número de estudos prospectivos que demonstram os resultados comparativos e à modernização dos materiais de síntese para fixação dessas fraturas. Atualmente não são mais aceitos certos encurtamentos e certas deformidades.4, 5, 7, 8, 9 and 10
Segundo Iannotti et al.,7 o tratamento das fraturas do terço médio da clavícula, com a colocação de placa na sua superfície superior, apresentava vantagens biomecânicas e maior facilidade no acesso cirúrgico. Porém, Kloen et al.8 demonstraram que as lesões iatrogênicas das estruturas neurovasculares abaixo da clavícula ocorriam com maior frequência nesses tipos de osteosínteses e que o risco diminuía quando a placa era posicionada ântero‐inferiormente.7 and 8
Labrocini et al.6 demonstraram que os ramos do nervo supraescapular, responsáveis pela sensibilidade sobre a clavícula, e as regiões ântero‐medial do ombro e proximal do tórax estão vulneráveis nos casos de fraturas da clavícula e no seu tratamento cirúrgico. Segundo Sinha et al.,4 as estruturas com maior risco de lesão durante a osteossíntese do terço médio da clavícula são: a veia subclávia, a artéria subclávia, o plexo braquial e a pleura pulmonar. Segundo esse estudo, a veia subclávia apresentava‐se mais próxima do terço médio da clavícula do que o plexo braquial, a uma distância média de 12,45 mm. Em nosso estudo a veia subclávia direita estava a uma distância média de 10,77 mm e a esquerda a 9,82 mm do terço médio da clavícula e também era a estrutura vascular mais próxima.4 and 6
Segundo Mouzopoulos et al.,9 a associação entre fratura de clavícula e lesão do plexo braquial é bem conhecida e, normalmente, ocorre por tração supraclavicular de alta energia, à qual a fratura da clavícula está associada, mas não é o fator causal. Em outro estudo, de Della Santa et al.,10 demontrou‐se que o trauma direto do plexo braquial por fragmentos da fratura da clavícula ocorria com pouca frequência (1%).9 and 10
Jeyaseelan et al.11 relataram que o envolvimento do nervo supraescapular é um achado comum nas fraturas de clavícula, pelo fato de ser a estrutura do plexo braquial mais próxima ao terço médio da clavícula. O encurtamento da clavícula e a mobilização dos fragmentos da fratura durante a fixação podem causar a compressão do plexo braquial, devido à diminuição do espaço infraclavicular. No tratamento conservador, a presença do calo ósseo também pode ser a causa da lesão do nervo supraescapular, por compressão. Em nosso estudo, a estrutura do plexo braquial mais próxima do terço médio da clavícula foi o nervo supraescapular.11
Portanto, segundo a literatura consultada, as lesões neurovasculares periclaviculares estão mais associadas às lesões iatrogênicas cirúrgicas do que ao próprio trauma. Em nosso estudo, as estruturas neurovasculares mais próximas ao terço médio da clavícula e, portanto, mais suscetíveis a lesões nessa região foram o nervo supraescapular e a veia subclávia, respectivamente. Durante nossas dissecções, observou‐se ainda que o músculo subclávio fazia uma proteção ântero‐superior às estruturas neurovasculares adjacentes e que pode ser usado como referência anatômica para delimitar a “zona de segurança”.
Conclusão
Houve diferença estatística entre as distâncias do nervo supraescapular e divisão anterior do tronco superior comparativa entre os lados direito e esquerdo. As estruturas neurovasculares mais próximas ao terço médio da clavícula foram o nervo supraescapular e a veia subclávia.
Conflitos de interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
Referências
1
S. Standring
Gray's anatomy: the anatomical basis of clinical practice.
(40th ed.)Churchill Livingstone, New York (2008)
2
C.J. Basamania, C.A. Rockwood Jr.
Fractures of the clavicle
C.A. Rockwood Jr., F.A. Matsen 3rd, M.A. Wirth, S.B. Lippitt (Eds.), The shoulder (4th ed.), Saunders, Philadelphia (2009), pp. 617–770
3
A.Y. Shin, R.J. Spinner, S.P. Steinmann, A.T. Bishop
Adult traumatic brachial plexus injuries
J Am Acad Orthop Surg, 13 (6) (2005), pp. 382–396
View Record in Scopus | Citing articles (67)
4
A. Sinha, J. Edwin, B. Sreeharsha, V. Bhalaik, P. Brownson
A radiological study to define safe zones for drilling during plating of clavicle fractures
J Bone Joint Surg Br, 93 (9) (2011), pp. 1247–1252
View Record in Scopus | Full Text via CrossRef | Citing articles (9)
5
K.J. Jeray
Acute midshaft clavicular fracture
J Am Acad Orthop Surg, 15 (4) (2007), pp. 239–248
View Record in Scopus | Citing articles (52)
6
P.J. Labronici, F.S. Segall, B.A. Martins, J.S. Franco, G.J. Labronici, B.A. Silva, et al.
Fratura da clavícula – incidência de lesão do nervo supraclavicular
Rev Bras Ortop, 48 (4) (2013), pp. 317–321
Article | PDF (730 K) | View Record in Scopus
7
M.R. Iannotti, L.A. Crosby, P. Stafford, G. Grayson, R. Goulet
Effects of plate location and selection on the stability of midshaft clavicle osteotomies: a biomechanical study
J Shoulder Elbow Surg, 11 (5) (2002), pp. 457–462
Article | PDF (105 K) | View Record in Scopus | Citing articles (65)
8
P. Kloen, C.M. Werner, S.A. Stufkens, D.L. Helfet
Anteroinferior plating of midshaft clavicle nonunions and fractures
Oper Orthop Traumatol, 21 (2) (2009), pp. 170–179
View Record in Scopus | Full Text via CrossRef | Citing articles (9)
9
G. Mouzopoulos, E. Morakis, M. Stamatakos, M. Tzurbakis
Complications associated with clavicular fracture
Orthop Nurs, 28 (5) (2009), pp. 217–224
View Record in Scopus | Full Text via CrossRef | Citing articles (6)
10
D. Della Santa, A. Narakas, C. Bonnard
Late lesions of the brachial plexus after fracture of the clavicle
Ann Chir Main Memb Super, 10 (6) (1991), pp. 531–540
11
L. Jeyaseelan, V.K. Singh, S. Ghosh, M. Sinisi, M. Fox
Iatropathic brachial plexus injury: a complication of delayed fixation of clavicle fractures
Bone Joint J, 95‐B (1) (2013), pp. 106–110
View Record in Scopus | Full Text via CrossRef | Citing articles (1)
☆
Trabalho desenvolvido no Hospital do Servidor Público Estadual, São Paulo, SP, Brasil.
Autor para correspondência.
Copyright © 2014 Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. Published by Elsevier Editora Ltda.